4 de fev. de 2010

UM POBRE DIABO


incomodava-me que ela se movimentasse. gostava de possuí-la assim, estática. cada movimento realizado por ela descompunha toda a beleza que eu já havia assimilado, e criava novos padrões, novos formatos que dificultavam o meu entendimento, exigindo um novo olhar, uma nova maneira de me apoderar. era preciso captá-la! mas inerte. em movimento seria simplesmente impossível. irremediável. foi preciso amarrá-la. no entanto, os acrobatas amigos dela soltaram-na na calada da noite. sofri por algum tempo com isso, mas cobrei o preço justo de cada um daqueles macacos!

não havia outra maneira, era preciso desvencilhar-me da ideia de um novo olhar. passei a frequentar bares abjetos, com putas feias, para lembrar-me sempre do quanto eu era insignificante e descartável na história que ela dizia escrever. gostava da maneira como eu sempre olhara pra ela.
uma noite, sem que ela percebesse, roubei-lhe o caderninho de anotações para ver o que tanto ela escrevia ali, preocupava-me a ideia de um amante, sonhos secretos com outros homens. tudo mentira, não escrevia coisa nenhuma, apenas fingia desenhar as letras no papel, na verdade, desenhava, com traços iguais aos de uma criança, uma família feliz num campo amarelo.
não, eu nunca iria morar na casa de espelhos com ela. não abandonaríamos essa vida lazarenta no circo para vivermos um idílio em alguma ilha distante. ela não faria nenhuma loucura de amor por mim, pois era sensata e equilibrada, como gostava de dizer. e eu era mesquinho demais, ela dizia. preocupado demais em manter as coisas como elas deviam ser - e eu não estava certo? por acaso alguma vez deixei de trazer a comida para ela se fartar? havia algum desejo dela que eu não me esforçasse por realizar? quero um avião. benzinho, quero uma estrela no nosso quarto pra me iluminar! amor, faz pra mim uma lagoa pra me banhar? meu homem, queria que o céu fosse um pouquinho mais baixo pra eu poder tocar naquela nuvem! e lá estava eu, solícito, sempre a agradar-lhe.
tudo bem que às vezes me enchia disso tudo e batia um pouco nela, o pessoal do circo aparecia no nosso trailer para acudir-lhe os gritos, tratar as feridas com poções trazidas pelos mágicos e maldizer-me. mas ninguém entendia que era só um momento de desabafo, nunca fui muito de conversar, eu apenas era prático. fazia, deixava que os outros conversassem, o que me importava era realizar! uma ingrata, isso sim! diante de todos, acusava-me de monstro, mas sempre voltava pra dormir nos meus braços, e era tão bom. depois do incêndio, que eu realizei sozinho, prometi a mim mesmo nunca mais pensar nela, e não penso.