Tenho sido injusto para com a Noite. Amo a Noite e vivo a difamá-la, chegando mesmo ao crime de tomar narcótico para combater a insônia - esse meu único bem.
Campos de Carvalho
agora, por exemplo, que a lacuna acabou, observo que todos aqui, sem exceção, julgam-se deuses, como se unicamente por estarem aqui já pudessem assegurar que são 'diferentes', 'geniais', 'impressionantes', 'desconcertantes'... poderia relacionar uma série infinita de adjetivos que eles mesmos costumam usar quando comentam a própria vida desde que chegaram aqui no circo. o circo! o que é o circo? essa lona não me engana! quer dizer, julgam carregar dentro de si uma pequena parcela do que costuma se chamar divino, transcendente. e por isso querem ser mais bem tratados do que os outros funcionários, exigem mordomias que nunca tiveram em lugar nenhum. e acham que exercem essa condição de deuses no espetáculo também, é claro. basta olhar para eles um momento e lá estará: a mulherbarbada assoberbada com a própria beleza esfíngica e seus mil espelhos para se contemplar, o homem-bala persignando-se antes da explosão que irremediavelmente o jogará do outro lado do picadeiro, a GORDA e o orgulho dos seus 283 quilos, as siamesasquiromantes que, antes de entrar no palco central, precisam dos afagos nas orelhas do elefante com sua pele de rocha e olhos de âmbar, o homem maisfortedomundo banhando-se em sangue de macaco antes do número em que arrebenta as correntes que o prendem diante da serramortal. e, no entanto, desconhecem a miserável condição a que assim se submetem, sobretudo por ignorarem que nem mesmo as siamesasquiromantes podem afirmar, com certeza, terem essa parcela divina que todos tanto veneram e desejam por aqui. uma vez, enquanto conversávamos sobre isso sentados no banquete de domingo na mesa do refeitório, o equilibrista que atropelou a mulher e o amante, indignado com as minhas idéias, perguntou num tom de escárnio seguido de uma longa gargalhada. o que um anão teria de divino? siamesasquiromantes carregam em si já essa mácula divina. mas você, um anão?! e ainda que tivesse, não teria apenas uma pequena parte, proporcional ao teu tamanho? por algum tempo eu pensei que tivesse esse quinhão de divindade também, e tentava prová-lo aos outros. mas desisti. pois agora eu sei que há outras coisas e esse circo não me engana.
eu nunca consigo dormir, tenho apenas esses lapsos, esses segundos de escuridão. e acho isso bom, pois não perco o meu tempo de insônia com coisas insignificantes, presto mais atenção nas coisas importantes. mas o que há de oportuno nisso tem a sua contraparte de malefício: se nunca durmo, por conseguinte, nunca sonho também. e tudo o que eu mais queria era sonhar o sonho que a GORDA sempre me conta, em que ela me vê caminhando pela cidade. é assim:
a GORDA se vê nos vidros espelhados de um grande edifício, está sentada na calçada de uma rua movimentada. tem nas mãos duas rosas vermelhas, das quais saem as leoas que atacam as zebras, que sangram e ficam com listras vermelhas além das pretas. ela vê o anão se aproximando com seu terno verde xadrez, no entanto não consegue ver seu rosto, pois ele está girando no carrossel, mas não tem dúvidas de que o anão sou eu. uma leoa me ataca e eu desapareço. quando reapareço estou levitando a uma distância mínima da GORDA, nossos narizes chegam a se tocar, e nossos olhos servem de espelho um para o outro. enquanto eu olho diretamente na menina dentro dos olhos da GORDA, ela vê dentro dos meus as siamesasquiromantes na rodagigante apontando para os prédios da rua marechal deodoro da fonseca desabando um a um, como num jogo de dominó, e das janelas dos prédios que ainda permanecem em pé, em volta dos escombros dos que estão já em ruínas, pendem camas penduradas por lençóis sujos de sangue e excremento, e os moradores deitados nas camas de olhos fechados entoam o verso e quem sabe sonhavas meu sonho da canção do cartola.
agora eu estou caminhando ao lado da GORDA, perto das jaulas das feras. é estranho no começo. você está fazendo alguma coisa habitual como escovar os dentes, ou ler um livro, de repente, essa escuridão, como se fosse uma lacuna na visão, e então, em um segundo, você está em outro lugar, com outras roupas, outras pessoas. todos olhando pra você com um ar tão complacente e cheio de benignidade que você até se esquece de perguntar afinal de contas onde está o livro que eu estava lendo? e a escova de dente?! não sei se esse segundo, esse pequeno lapso, às vezes parece demorar semanas. houve uma vez que a obstrução pareceu durar meses... a GORDA interrompe meus devaneios pra me dizer que chegamos. ficamos ali observando os leões, de mãos dadas, enquanto ela chora. depois de algum tempo, voltamos pros dormitórios. ela me diz que precisa dormir. eu sorrio e me despeço com um aceno de cabeça.
enquanto me afasto, penso como poderia a GORDA também dormir como os outros. logo ela que era tão sincera e tinha problemas intestinais. dormir como todos os outros! todas as pessoas poderiam dormir frágeis e desamparadas como animais, dóceis, respirando de boca aberta, com os olhos fechados, e aquela expressão boba de serenidade no rosto. mas a GORDA?
o que a GORDA não sabe é que eu a observo enquanto ela dorme e, às vezes, abro os seus olhos para eu poder me ver. engraçado isso, dentro dos olhos da GORDA eu me enxergo melhor, consigo perceber coisas que nenhum outro espelho me revela, talvez porque nós dois somos bem diferentes um do outro. ela sempre diz que eu ando muito triste, e que a tristeza me tornará insensível, desculpa-se por dizer-me isso desse modo e jura que não quer me ofender. nunca entendi isso muito bem. eu sempre pergunto a ela se não vê mais nada no sonho depois disso. e ela sempre mente respondendo que não. não é bem uma mentira, é um desejo.